56 a 0. Um placar aparentemente absurdo para o futebol, mas não impossível no Campeonato Carioca Feminino. Com a busca por desenvolvimento da modalidade no país, a Ferj, entidade responsável pelo futebol no Rio de Janeiro, passou o número de equipes do Carioca Feminino de 11 para 29. As disparidades foram inevitáveis, e a reportagem de oGol conta um pouco a história.
Atualmente, o Carioca Feminino está na segunda fase de grupos. Os clubes grandes da cidade dominam o torneio e conquistam resultados impressionantes. Como os 56 a 0 do Flamengo no Greminho, que merece uma boa explicação ou, ao menos, uma contextualização.
Ainda na primeira fase de grupos, o Flamengo recebeu o Greminho, equipe do bairro do Cosmos, no Rio de Janeiro, fundada em 2009. Por dez anos, o Greminho viveu apenas do futebol masculino, e só foi se filiar a Ferj em 2017.
Hamilton Silva, de 33 anos, é o idealizador do clube. Em conversa com a reportagem de oGol, ele contou que, com a filiação junto a Ferj, o Greminho recebeu, juntamente com todas as equipes filiadas, um convite para participar do Carioca Feminino de 2019. Coragem foi a palavra para o clube, que formou um time, como confessa Hamilton, faltando apenas dez dias para o campeonato.
"Nosso trabalho feminino começou há dois meses. A gente fez dez anos de clube, mas sempre masculino. O primeiro time feminino só começou dois meses atrás. A gente não tinha nem meninas o suficiente. A gente só tinha cinco, seis meninas que jogavam com os meninos. Quando houve o convite da Federação, a gente começou a correria para arrumar meninas", começou a contar o treinador, que brincou sobre o "processo de seleção".
"A gente não teve tempo para a seleção. Quando faltavam dez dias para a competição, a gente começou a montar o time. Então foi mais ou menos assim: quem chegava, a gente estava agregando (risos). Não teve processo de trabalhar, de definir, muitas não sabiam nem em que posição jogavam", confessou.
A estrutura do Greminho, como conta Hamilton, também não ajuda. O time treina em uma praça pública no Cosmos e tem que dividir o local com os moradores. São dois treinos por semana, e de noite.
"A gente treina em um campo de areia, em uma praça pública, aqui no bairro do Cosmos. A gente treina terça e quinta, 18h30. Não podemos treinar todo dia porque é espaço público e temos que dividir com a população. A estrutura é precária: areia, não dá para fazer coletivo porque não é campo de 11, falta material para a gente fazer o trabalho. Mas a gente encara como uma oportunidade para elas", apontou.
Sobre os 56 a 0, Hamilton destacou a coragem das meninas que comanda. O time ficou sem a goleira Rayane e acabou jogando boa parte do encontro com uma zagueira na meta. Ainda assim, as jogadoras quiseram tentar até o final.
"No jogo contra o Flamengo, nossa goleira (Rayane), quando o jogo estava 12 a 0, se lesionou. Por não termos uma goleira reserva, colocamos nossa zagueira (Muriel), que tinha uma noção de gol e colocamos ela lá. Em nenhum momento elas quiseram abrir mão do jogo. A gente teria a opção de mandar as meninas caírem para o árbitro encerrar por não termos o número suficiente de atletas, mas tivemos hombridade de continuar no jogo. Isso chamou a tenção de todo mundo. Porque quando você está apanhando muito, você quer que acabe. Mas elas não, mostraram respeito a camisa e foram até o final do jogo".
O Greminho, que tem um time muito jovem e chegou a ter uma menina de 15 anos na equipe, fez quatro jogos no Carioca, marcou um único gol e sofreu 78. Ainda assim, Hamilton analisa de forma positiva a participação da equipe no torneio."Hoje, depois da repercussão do projeto no Carioca, a gente pulou para 35 meninas. Vem menina de fora, tem projeto para a base. Para elas, foi um sonho, curtiram muito isso e tiraram muita lição".
A atacante Flávia, do Flamengo, esteve nos 56 a 0. Também para a reportagem, a flamenguista defendeu que o time tinha de manter o foco, mesmo com o placar muito largo. Diminuir o ritmo seria desrespeitar a equipe do outro lado.
"Sabemos que do outro lado tem equipes com dificuldades e escassez de recursos, porém meninas cheias de sonhos. Então, sempre temos que ter cautela para avaliar e julgar este tipo de situação. Não é o ideal essa disparidade de níveis, porém é uma oportunidade que sei o quanto é importante para essas meninas. Procuro me manter focada fazendo a mesma coisa que eu faria em qualquer outra situação de jogo. No meu caso, que sou atacante, meu foco é gols e também de ajudar minhas companheiras. A entrega tem que ser exatamente a mesma, se não for, você está desrespeitando quem está do outro lado", comentou Flávia.
O Flamengo marcou incríveis 121 gols no Carioca e não sofreu nenhum. Flávia garante que a principal motivação é "honrar a camisa do Flamengo" e defende oportunidade para todas as atletas, mas apoia a criação de séries (ou divisões) diferentes.
"Eu, Flávia, sou a favor de oportunidades e de manter todas essas meninas em atividade. Obviamente, com as condições necessárias de se trabalhar e desempenhar o seu futebol com dignidade. Porém, sou a favor da categorização da competição em séries. Pelo menos umas três divisões poderiam ser feitas. Com isso, manteríamos todas as meninas trabalhando e aumentaria o nível de competitividade da competição. Essa é a minha humilde a opinião. Quem sabe não acontece para 2020", disse a jogadora.
O Campeonato Paulista, mais consolidado, é um modelo para o carioca. O equilíbrio é maior entre os times e o Corinthians, vice-campeão brasileiro, é o único time invicto. O Timão marcou 63 gols e levou sete em 18 partidas até o momento.
Ariel Godoi, do Fluminense, e Mariana Santos, do Botafogo, já jogaram o Estadual de São Paulo. A botafoguense, que jogou o Paulista deste ano na Ponte Preta, vê o Carioca deste ano como um "começo" para o desenvolvimento da modalidade no Rio.
"A minha vinda para o Botafogo se deve por alguns motivos: primeiro, o carinho que tenho por este clube. Joguei aqui boa parte do inicio da minha trajetória e estou feliz em voltar. Segundo, sou carioca e estou perto da minha família. E, por fim, acredito que trata-se de um divisor de águas para o futebol carioca feminino. O futebol feminino veio para ficar no RJ. Algo precisava ser feito e assim se fez. Com mais alguns ajustes para os próximos anos, sem dúvidas, teremos um dos estaduais mais competitivos do país", analisou.
O Botafogo fez 36 gols e sofreu apenas um no Carioca, com goleadas por 12 a 0 a 11 a 0. Mariana confessa que a competitividade é uma das grandes diferenças entre o Carioca e o Paulista. "Lá (em São Paulo) não se vê placares tão elásticos como acontece aqui no Rio. Alguns ajustes precisam ser feitos, mas o melhor nível virá com o tempo e o poder de investimento das equipes que abraçarem, de fato, a modalidade".
O Fluminense não fica atrás e já somou 52 gols no Carioca, mas levou 13. Ariel Godoi endossa o discurso de Mariana e acredita que o Rio pode ser, assim como São Paulo já é, referência na modalidade.
"A ideia foi lançada e oportunidades foram dadas às equipes. Com a sequência dos anos, devem categorizar a competição em séries. O Rio é um polo muito forte do futebol no Brasil e acredito que, em um futuro próximo, será referência, assim como São Paulo".