Escolas do futebol: O projeto que faz o Independiente Del Valle desafiar gigantes

Na última quinta-feira, a América do Sul assistiu com o espanto a goleada de 5 a 0 aplicada pelo Independiente Del Valle sobre o atual campeão Flamengo, pela Libertadores. O clube equatoriano dominou a partida e o nome do técnico Miguel Ángel Ramírez, outrora especulado no rubro-negro, voltou a ser pauta na mídia brasileira. 

Entretanto, a convincente vitória é apenas o ponto final de um processo a longo prazo e muito bem estruturado. Por conta disso, no terceiro episódio da série sobre as categorias de base espalhadas pelo mundo, oGol conversou com um dos responsáveis pelo processo formativo para contar curiosidades de um clube que, apesar de jovem, cresce a cada ano e se tornou figura constante nos torneios internacionais, com triunfos sobre as maiores equipes do continente e títulos. 

Em um breve resumo, o Independiente Del Valle foi fundado em 1958, em Sangolquí, na região metropolitana de Quito, e chegou à elite do Campeonato Equatoriano após ser campeão da Terceira Divisão, em 2007, e da Segunda, em 2009. Na elite desde então, a equipe ainda não levantou o troféu nacional, mas chegou perto em 2013, quando ficou com o vice. No âmbito internacional, o clube é o atual campeão da Copa Sul-Americana e foi vice da Libertadores, em 2016, eliminando o Boca Juniors na semi. Já são oito temporadas consecutivas com presença em torneios continentais. 

Títulos na base e ideia de jogo

O futebol formativo no Equador consiste em cinco categorias: sub12, sub14, sub16, sub18 e sub20, esta última é popularmente chamada de Reserva e nela o Del Valle é quatro vezes campeão nacional (2012, 2013, 2015 e 2017), e atual campeão da Libertadores Sub-20, após despachar o Flamengo, na semi, e bater o River Plate, da Argentina, na final.

O Independiente Del Valle ainda possui a equipe B, o Independiente Juniors, que joga a Segunda Divisão e mescla jovens atletas com outros que excederam os 20 anos e não têm espaço no elenco principal. Por motivos de lisura, o segundo time é impedido de subir à elite. 

Como ocorre em todas as equipes, o primeiro passo para a formação de um atleta é um processo de captação bem estruturado. Ainda que seja um dos maiores celeiros de talentos do continente, o diretor das categorias de base do Independiente Del Valle, o espanhol Iván Vázquez, com passagens por Deportivo La Coruña e Compostela, garante que o clube segue investindo (cerca de 1 milhão de dólares anuais) e conta com escolas espalhadas pelo Equador que ampliam o poder de observação em diferentes zonas do país. 

"O departamento de scouting está crescendo e estamos dando um salto de qualidade, trazendo mais pessoas. Nós temos um chefe e um coordenador e uma dupla de analistas que viajam pelo país. Junto a isso, temos dois tipos de escolas. As principais são quatro, entre a costa e a serra equatoriana, que nos dão uma quantidade maior de jogadores para a nossa primeira categoria (sub-12). Para os meninos menores, as mais educativas, são mais de 200 que levam a marca Independiente Del Valle. As escolas trabalham durante todo ano, recrutando, enviando os atletas, nos comunicando. Quando estão prontos lá, eles vêm ao clube e fazem uma jornada de treinamentos em nossas instalações. Nós observamos e os selecionados passam a treinar com a equipe", contou Vázquez. 

Uma vez aprovados, as promessas passam a morar no complexo esportivo, onde usufruem de toda a estrutura, uma escola e uma pequena ajuda financeira, já que só assinam contrato a partir dos 18 anos. É nessa idade que são liberados para optar por seguir vivendo no clube ou morarem nas imediações do local. Atualmente, dos 133 jogadores da base do Del Valle, 121 residem nas instalações. 

Para que os meninos tenham condições de desenvolvimento, o clube orienta que os jogadores do sub-12 joguem o mínimo de 40% dos minutos de todos os jogos. Este número varia progressivamente até o time B, onde a determinação é de 15%. Outra recomendação é não colocar os de nível técnico mais baixo em partidas nas quais as vitórias estão garantidas por um placar elástico ou diante dos últimos colocados, mas sim, em situações que testem a capacidade do atleta.

©Divulgação/Independiente Del Valle

O diretor espanhol explicou que desde a primeira categoria, os jovens são instruídos a jogar em uma ideia de jogo já estabelecida. Porém, é importante que cada equipe repita os comportamentos, mas que jogue de acordo com as características dos jogadores de cada elenco.

"As pessoas dizem que jogamos da mesma maneira do sub-12 ao profissional. É mentira! A ideia de jogo é comum a todas as categorias. Nós queremos ter a bola, fazer um jogo de posição, sermos agressivos a todo momento e pressionar o rival. Os padrões de comportamento se repetem, como defendemos, como atuam os extremos, como queremos iniciar o jogo, mas o modelo varia, porque isso é uma marca dos atletas e eles são diferentes. Tentamos que todas as categorias joguem no 4-3-3, mas existe uma que joga no 4-2-3-1, porque não tem um bom camisa 5. A nossa sub-16 é um pouco mais vertical, porque não domina tanto o adversário, enquanto a sub-18 faz isso e tem muita posse de bola", detalhou Vázquez. 

Intercâmbio esportivo

Atualmente, o profissional conta com 30 jogadores. Desses, 14 tem passagens pelas categorias de base do clube. O objetivo é ter no time titular do profissional sete talentos formados por lá. Ainda sobre as características dos equatorianos, o diretor da base apontou variações na formação do jogadores antes mesmo de chegar ao clube. Para Vázquez, que está no Equador há dois anos, são nítidas as diferenças de comportamento dos garotos do país se comparados aos espanhóis. 

''Você anda pelas ruas e vê os meninos jogando até à noite, até os pais chamarem, principalmente na costa equatoriana. O futebolista daqui tem o talento inato e o biotipo muito forte, rápido e com boa técnica. Jogar contra os mais velhos na rua, desperta uma capacidade técnica. Eles gostam de ter a bola no pé, encarar e driblar o adversário, mas por outro lado, falta o entendimento do jogo. Na Espanha, isso se perdeu um pouco, pelas coisas que acontecem na sociedade, que está cada vez mais preocupada em não deixar as crianças na rua e também por tendências de hábitos, como o vídeo-game'', explicou Vázquez. 

Sobre a Espanha, Iván Vázquez não é o único nascido no país trabalhando no projeto do Independiente Del Valle. Além dele e do técnico do profissional, Miguel Ángel Ramírez, o clube conta com mais cinco espanhóis: Felipe Sánchez, assistente técnico, Fran Trujillo, preparador físico, ambos do profissional, Luis Pastur, técnico do sub-16, José Mato, técnico do sub-18 e Susú Cores, técnica do time feminino profissional.

O staff internacional ainda é composto no elenco principal pelo assistente técnico argentino Martín Anselmi, pelo preparador de goleiros português Ricardo Pereira e pelo analista de vídeo colombiano Luis Piedrahita.

De fato, o futebol espanhol tem grande influência na formação dos jogadores do Del Valle. Os profissionais do clube viajam com frequência ao país europeu para estudarem e se atualizarem com novos métodos de treinamentos e participam de eventos internacionais, fazendo um intercâmbio de experiências. Outro importante contato para a melhora nos conceitos do futebol é a Academia ASPIRE, em Doha, no Catar. É um ponto estratégico para diálogos com equipes do mundo inteiro.

O local é um dos centros de alto rendimento esportivo mais modernos do mundo com o objetivo de analisar e desenvolver os atletas do país e recebe gigantes do futebol europeu para pré-temporadas. Além disso, a ASPIRE mantém parcerias com quatro clubes ao redor do globo: Leeds United (Inglaterra), Cultural Leonesa (Espanha), Eupen (Bélgica) e Odisha FC (Índia). 

"Nosso método é próximo ao do europeu. O futebol espanhol, com a capacitação e formação, está muito valorizado no mundo. Mais do que a nacionalidade, é encontrar os profissionais que se encaixem no que estamos buscando. Digamos que ASPIRE ajudou o Independiente a iniciar o projeto, mas foi o clube que formou toda a estrutura. Hoje em dia, o contato que temos são nas conferências que reúnem os times que tiveram relação com ASPIRE. Eu creio que são cerca de 40 grandes equipes como Boca Juniors, River Plate, Real Madrid e Barcelona. No ano passado, viajei à Doha durante cinco dias e pude compartilhar conhecimento com todos eles. É algo anual para intercambiar as informações", contou Vázquez. 

Projeção de melhora

Embora tenha um alto investimento a nível equatoriano e um trabalho de longo prazo, que tem tido êxito nacional e continental, os jogadores do Independiente Del Valle ainda não atingiram o alto rendimento em grandes equipes europeias. Os maiores destaques da base do clube foram negociados pela América do Sul. No Brasil, os casos mais famosos foram o volante Jefferson Orejuela e o meia Junior Sornoza, que deixaram o time equatoriano rumo ao Fluminense, o meia Alan Franco, atualmente no Atlético Mineiro e o lateral Leandro Realpa, do Red Bull Bragantino.

O ponta Bryan Cabezas também teve passagem pelo Tricolor das Laranjeiras, mas não vingou. Hoje, ainda tem contrato com a Atalanta, da Itália, mas está emprestado ao Emelec, em seu país natal. Na Europa, os nomes mais relevantes são o ponta Gonzalo Plata, do Sporting, de Portugal, o volante Carlos Gruezo, do Augsburg, da Alemanha, e o meia Cristián Ramírez, do Krasnodar, da Rússia. Iván Vázquez acredita que a ausência de jogadores equatorianos nas principais equipes europeias possa ter ligação com a tradição futebolística do país. 

"A Europa olha muito para outros mercados e um dos últimos é o equatoriano, talvez porque a seleção ou os jogadores não tiveram muitos êxitos ao longo da história a nível mundial. Isso está sendo rompido. Muitos atletas nossos representam o país nas seleções de base (sub-15, 17 e 20) e atraem essa atenção internacional. Faltava esse entendimento do jogo e no Independiente Del Valle, também damos muito apoio ao nível psicológico, para que quando cheguem à Europa, estejam preparados. Muitas vezes quando esses jogadores saem e jogam lá, se cercam de coisas perigosas. Caso não esteja preparado, o mais comum é que regressem", opinou Vázquez.

O diretor das categorias de base também analisou o cenário atual do futebol no país, levando em consideração o rendimento da seleção. O Equador só disputou três Copas do Mundo (2002, 2006 e 2014), tendo como melhor colocação o 12º lugar na Alemanha, e, ao lado da Bolívia, são os únicos que ainda não levantaram o troféu de campeão da Copa América. O maior feito da nação no futebol é a medalha de ouro nos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, em 2007. Iván Vázquez reconhece que é difícil dizer onde os equatorianos podem chegar, mas acredita que nos próximos anos poderemos ter boas notícias.

"Não existe uma receita mágica para dizer quando vão ganhar. Creio que vamos ver um rendimento maior da seleção. O Equador deu uma mudada na estrutura esportiva da seleção. Agora existe uma ideia de trabalho, de jogo, os métodos foram mudados. E agora precisam de paciência porque podem fazer maravilhas e passar anos e não ganharem. Alguns clubes também estão tentando mudar os seus métodos. A médio prazo, em quatro ou cinco anos, penso que o Equador pode dar o que falar. Um exemplo é a nossa campanha na Libertadores. Nós tínhamos uma das equipes mais jovens, com ideias muito claras e métodos de trabalho, e competimos contra os melhores", finalizou Iván Vázquez.